O modelo de transporte público de Curitiba na contramão das ideias estrangeiras adotadas no Brasil

A cidade de Curitiba, localizada no Estado do Paraná, tem sido reconhecida no cenário internacional como uma das principais referências do planejamento urbano brasileiro, principalmente pelo sucesso de seu modelo de transporte coletivo. Nesse contexto, é interessante percorrer os caminhos que fizeram a capital paranaense conquistar tal reconhecimento. Abordando o processo de difusão de ideias, este ensaio traz à luz diferentes posições de Curitiba na história do urbanismo: ora importadora de ideias, ora exportadora.

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Os sistemas de transporte são elementos essenciais para o processo de expansão urbana. Capazes de direcionar o crescimento das cidades, essas estruturas conectam diferentes áreas e possibilitam acesso facilitado do território à população. Apesar de serem claras suas finalidades, a inserção do transporte como elemento de ordenação territorial ocorreu de maneiras distintas ao longo do tempo. Segundo Berman (2007), a grande inovação urbana do século XIX foi a implementação do “boulevard”, que potencializou a modernização da cidade tradicional de Paris. A proposta de Georges-Eugène Haussmann, de 1851-1870, consistia na abertura de vias que conectavam áreas verdes e favoreciam a fluidez do tráfego urbano.

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Arco do Triunfo. Created by @benjaminrgrant, source imagery: @digitalglobe

Nessa discussão, também é importante citar o projeto Eixample, de Ildefons Cerdà, para a expansão de Barcelona em 1859, o projeto foi estruturado em uma malha viária com avenidas atreladas a espaços livres, equipamentos públicos e edificações octogonais que conformavam esquinas chanfradas.

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Plano Cerdà (1858). Image © Ildefons Cerdà i Sunyer - Museu d'Historia de la Ciutat, Barcelona. Dominio público

Já o século XX foi marcado pelo desenvolvimento urbano a partir das infraestruturas de transporte, sobretudo a rodoviária, que possibilitou a intensificação do uso do automóvel. Novas cidades foram estruturadas por importantes eixos de transporte, o que favoreceu ocupações urbanas cada vez mais dispersas. Esse processo extensivo de expansão urbana foi marcado por uma série de planos rodoviaristas. Nos Estados Unidos, por exemplo, as propostas de Robert Moses estavam inseridas em um contexto desenvolvimentista fundamentado no transporte individual motorizado. Vias expressas com significativos impactos sobre o tecido urbano, como a Cross-Bronx em Nova Iorque, possibilitaram o deslocamento da população entre áreas residenciais suburbanas, centralidades e espaços de lazer.

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A via expressa Cross-Bronx foi um dos grandes projetos de construção de estradas de Moses. Imagem © Flickr CC User Zachary Korb

Essa mesma ideia desenvolvimentista, pautada no automóvel como símbolo de crescimento e progresso, se estendeu à América Latina e marcou a história do planejamento urbano no Brasil. Como resultado, houve grandes investimentos em obras de ampliação do sistema viário e infraestruturas por ele exigidas (pontes, túneis e viadutos). Nesse contexto está inserido o Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo, elaborado por Francisco Prestes Maia e João Florence de Ulhôa Cintra entre as décadas de 1920 e 1930. Diferentemente de várias propostas engavetadas, o referido plano foi executado e norteou o crescimento da capital paulista ao longo de décadas.

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Esquema teórico do Plano de Avenidas para São Paulo, de1930. Imagem: Scarwaster. Licença: CC BY-SA 4.0

Esses modelos urbanísticos citados foram difundidos por diversos países. Mesmo em Curitiba, que é conhecida como um dos principais exemplos brasileiros no que se refere a planejamento urbano, ideias estrangeiras foram adotadas, como foi o caso do plano elaborado, na década de 1940, pelo arquiteto francês Alfred Hubert Donat-Agache. Certamente, no Brasil, seu plano para a cidade do Rio de Janeiro de 1930 ganhou destaque, sendo reconhecido por Villaça (1999) como o primeiro a apresentar a expressão “plano diretor” e que, juntamente com o Plano de Avenidas para São Paulo, marcou o início de uma fase de planos multidisciplinares em substituição aos de embelezamento.

O Plano de Urbanização de Curitiba, elaborado por Agache e publicado em 1943, tinha como principais diretrizes a abertura de extensas vias, provisão de infraestrutura de saneamento e implantação do Centro Cívico. A cidade seria dividida em zonas funcionais, reafirmando os preceitos urbanísticos da escola modernista estabelecidos no século XX a partir da Carta de Atenas, de 1933, e contemplando centros com funções administrativas, comerciais, politécnicas, militares, industriais e de abastecimento (OLIVEIRA, 2000, p. 72). As intervenções pautadas na ideia de embelezamento, já consolidadas pelos planos europeus da época, repercutiram nessa proposta, que foi detalhada no Plano de Avenidas de Curitiba com um conjunto hierárquico de vias (PMC, 1943, p. 21-29). Ainda que não tenha sido totalmente executada, a proposta teve grande importância para tomadas de decisões urbanísticas posteriores.

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BRT de Curitiba, Estação tubo. Foto: Cassiano Psomas. Disponível para uso

Já o Plano Preliminar de Urbanismo – PPU (PMC, 1965), coordenado pelo arquiteto urbanista Jorge Wilheim, passou a ser denominado Plano Diretor de Desenvolvimento de Curitiba (1966) e, diferentemente da proposta de Alfred Agache, foi integralmente implantado. O sistema de transporte proposto por Wilheim também era fortemente marcado pela hierarquização viária, com rodovias de acesso, vias rápidas estruturais, vias coletoras, vias de ligação entre bairros e parques, além de alamedas para circulação de pedestres.

A proposta definia duas vias rápidas estruturais (uma ao norte e outra ao sul do centro da cidade) como importantes eixos de conexão entre centralidades, além de estarem associadas à densidade populacional e ao transporte público. Além disso, também previa a criação de um órgão responsável por gerenciar a implantação dos projetos urbanísticos, surgindo assim o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC). Para Oliveira (2000, p. 61), o reconhecimento de Curitiba foi dado mais por méritos de natureza política do que urbanística, visto que as prioridades de projeto dependiam da gestão administrativa.

Nesse cenário de projetos para Curitiba, uma ideia se destaca pela inversão da lógica de constantes importações de modelos estrangeiros adotados no Brasil: a criação de um sistema de transporte coletivo rápido sobre pneus que ficou posteriormente conhecido como Bus Rapid Transit (BRT). Em 1974, o arquiteto urbanista Jaime Lerner seguiu as premissas do PPU e consolidou a ideia de um modelo de transporte coletivo diretamente associado ao sistema viário e ao uso do solo, consolidando as bases do tripé do desenvolvimento urbano de Curitiba (transporte, sistema viário e uso do solo).

Eleito prefeito da cidade por três gestões, Jaime Lerner teve papel fundamental para importantes ações relacionadas ao transporte coletivo. A principal foi a efetiva implantação do Sistema Trinário de Transporte, que consistia em um modelo linear de crescimento e era composto por três tipos de vias paralelas: uma central (exclusiva ao transporte coletivo por ônibus), duas ao lado da central com velocidade reduzida e que davam acesso a quadras de usos diversos, além de mais duas do lado oposto da quadra (destinadas ao tráfego rápido de veículos).

Aqui vale pontuar que, mesmo sendo reconhecida como um exemplo de sucesso em transporte coletivo, Curitiba não deixou de priorizar o transporte individual motorizado, haja vista a destinação dessas quatro vias destinadas ao automóvel paralelas ao corredor central exclusivo para ônibus. Apesar disso, o objetivo do sistema era garantir a integração entre o transporte coletivo e as atividades de comércio, serviço e moradia da população que utilizasse o sistema (IPPUC, 2004), formando assim os Setores Estruturais, marcados na paisagem urbana pela verticalização das edificações ao longo dos eixos de transporte coletivo.

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Esquemas de propostas urbanísticas para Curitiba: à esquerda, Plano de Alfred Agache de 1943; no centro, Proposta de Jorge Wilheimde 1965; e à direita, a Rede Integrada de Transporte proposta por Jaime Lerner a partir de 1974 (Fonte: Elaborados pelo autor com base em mapas disponibilizados pelo IPPUC e pela Prefeitura de Curitiba). Representação sem escala
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Setor estrutural na escala do pedestre. Fonte: Acervo pessoal, 2022
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Verticalização dos eixos de transporte coletivo Foto: Francisco Anzola, via Flickr. Licença: CC BY 2.0

De acordo com BRT Data (2022), a ideia dos corredores exclusivos já havia sido implantada em outras cidades anteriormente a Curitiba, como Liège (Bélgica, 1968), Runcorn (Reino Unido, 1971) e Lima (Peru, 1972). Foi a partir de Curitiba, todavia, que a ideia se tornou inovadora. Além de canaletas segregadas das vias destinadas a outros modos de transporte, o sistema contava com ônibus expressos e linhas alimentadoras, dando origem à Rede Integrada de Transporte para que os ônibus pudessem operar o transporte de massa dispensando-se um sistema sobre trilhos (IPPUC, 2004). Esse modelo idealizado por Jaime Lerner foi aprimorado ao longo do tempo e tem como principais características vias segregadas exclusivas para ônibus, estações que permitem o acesso dos passageiros no nível dos veículos, integração entre linhas troncais e linhas alimentadoras do sistema, além de cobrança tarifária antes do embarque.

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Embarque de passageiros em nível. Fonte: Acervo pessoal

No texto As ideias fora do lugar, Schwarz (2014) discorre sobre o funcionamento da sociedade brasileira e do modelo econômico-político, adotado pelas elites dominantes, que importa ideias estrangeiras, especialmente europeias, distantes da realidade social brasileira que tem origem em um contexto de escravidão. O rebatimento do pensamento de Schwarz para o planejamento urbano é feito por Ermínia Maricato (ARANTES, VAINER & MARICATO, 2000), que trata especificamente da distância entre o planejamento urbano e a importação de princípios do modernismo e padrões de uso e ocupação do solo sem preocupação com a realidade concreta da cidade latino-americana. Ou seja, ideias pretensamente universais que se aplicam a apenas uma minoria da sociedade (ideias fora do lugar) e lugares que não estão submetidos à ordem e ao planejamento (lugar fora das ideias).

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Gráfico da difusão do BRT: na vertical, os anos de inauguração do sistema; na horizontal, a quantidade de cidades que reproduziram a ideia. Fonte: elaborado pelo autor a partir de BRT Data, 2022

O gráfico acima revela a difusão do modelo BRT ao longo do tempo, intensificada após sua reprodução em Bogotá (Colômbia), que aprimorou o sistema com a possibilidade de ultrapassagem entre os ônibus ao implantar, no ano 2000, o TransMilenio. Adaptado a aproximadamente 181 cidades, sendo 29 (16%) anteriores ao modelo de Bogotá e 152 (84%) a partir dele, o modelo foi amplamente reproduzido nos Estados Unidos, na França e na China, porém teve maior repercussão em países latino-americanos: 61 cidades das quais 24 são brasileiras (BRT Data, 2022).

Essa difusão tem ocorrido de maneira parcial, sendo comum encontrar casos nomeados como BRT, porém constituídos de simples corredores de ônibus não integrados a uma rede de transporte coletivo ou a outros elementos do desenvolvimento urbano. Nesse sentido, é preciso lembrar que diversos fatores devem ser considerados a fim de que não se tornem apenas um incentivo às cidades a reproduzirem uma ideia de sucesso dissociada da realidade local.

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BRT Transmilênio. Foto: Divulgação
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BRT de Chengdu, China. Imagem: Dingli35. Licença: CC BY-SA 4.0
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BRT Metrobús, Cidade do México. Foto © City Clock Magazine, via Flickr. Licença: Creative Commons
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BRT Metrobús, Avenida 9 de Julio, Buenos Aires. Imagem: Matias Repetto
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Expresso Tiradentes, São Paulo. Foto: Pedro Ricci - @pl_ricci

O modelo BRT não se difundiu apenas por grandes metrópoles mundiais. Diversas cidades médias brasileiras reproduziram características do sistema na busca de soluções em mobilidade urbana, como Criciúma (SC), Maringá (PR), Sumaré (SP) e Uberaba (MG). Cabe ressaltar que o projeto básico implantado em um dos três corredores de Uberaba foi desenvolvido pelo próprio idealizador do sistema de Curitiba, Jaime Lerner. O design das estações tubulares no primeiro corredor é quase idêntico ao da capital paranaense implantado na década de 1990. Nesse sentido, as semelhanças com as estações de Curitiba revelam um grande grau de aproximação entre ambas as cidades, afirmando também a difusão de uma identidade.

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Estação do BRT Vetor, Corredor Leste-Oeste, Uberaba/MG. Fonte: Acervo pessoal

Diante da recorrente priorização do uso do automóvel nos centros urbanos, soluções de mobilidade que reaproveitam o espaço das infraestruturas rodoviaristas destinando-o ao transporte coletivo devem ser levadas em consideração. Apesar de o modelo Bus Rapid Transit ter sido reproduzido como uma alternativa eficiente, é importante ressaltar que ele também pode acarretar impactos negativos na estruturação e dinâmica urbanas. Para além da reprodução de modelos e ideias de sucesso, é fundamental que as cidades planejem sistemas de transporte coletivo integrados a outros elementos da mobilidade urbana e à diversidade de usos. O desejo é de que mais cidades brasileiras passem de agentes passivos no processo de difusão de ideias e se tornem protagonistas na história do urbanismo.

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O ensaio aqui exposto é uma adaptação da Monografia “Da importação de ideias estrangeiras à difusão de um modelo conceitual: uma abordagem dos sistemas de transporte no planejamento urbano de Curitiba”, que foi apresentada à Pós-graduação Lato Sensu em Mobilidade e Cidade Contemporânea da Escola da Cidade, com participação dos professores Pablo Hereñú e Tainá Bittencourt como banca avaliadora.

Referências bibliográficas

  • ARANTES, Otília Beatriz Fiori; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Coleção Zero à esquerda, Petrópolis, Vozes, 2000.
  • BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • BRT Data. BRT+ Centre of Excellence e EMBARQ. Global BRT Data. Versão 3.62. Última modificação: 14 de abril de 2022. Disponível em:<http://www.brtdata>. Acesso em 30/04/2022.
  • HEREÑÚ, Pablo Emilio Robert. Arquitetura da mobilidade e espaço urbano. São Paulo: FAUUSP, 2016. (Tese de Doutorado)
  • IPPUC – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba. O planejamento urbano de Curitiba. Curitiba: IPPUC, 2004.
  • OLIVEIRA, Dennison de. Curitiba e o mito da cidade modelo. Curitiba: Editora UFPR, 2000.
  • PMC - Prefeitura Municipal de Curitiba. Boletim PMC, ano 2, n. 12, nov.-dez. 1943. Curitiba: Empresa Gráfica Paranaense. Disponível em: <https://bit.ly/2T6oWFr>. Acesso em 27/04/2022.
  • PMC - Prefeitura Municipal de Curitiba. Plano Preliminar de Urbanismo de Curitiba. Curitiba: Prefeitura Municipal de Curitiba/Serete& Wilheim Associados, 1965.
  • SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. Ensaios selecionados. São Paulo, Companhia das Letras, Penguin Books, 2014, p. 47-64.
  • VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In: DEÁK, Csaba; SCHIFFER, Sueli Ramos (org.) O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: EdUSP, 1999. p. 169 – 243.

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Sobre este autor
Cita: Valdinei de Souza Castro. "O modelo de transporte público de Curitiba na contramão das ideias estrangeiras adotadas no Brasil" 29 Jan 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/995427/o-modelo-de-transporte-publico-de-curitiba-na-contramao-das-ideias-estrangeiras-adotadas-no-brasil> ISSN 0719-8906

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